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segunda-feira, 20 de abril de 2009

É PROIBIDO SONHAR (Frei Betto)

No passado, o futuro era melhor. Ao menos para a minha geração, a dos que tinham 20 anos na década de 1960 (Cuba, Che, Vietnã, Bossa-Nova, Cinema Novo, Nouvelle Vague, Beatles, tropicalismo etc.). Com o que sonham os jovens de hoje? Minha geração sonhou com a mudança do Brasil (castrada pelo golpe militar de 1964) e do mundo (congelada pela queda do Muro de Berlim). A globocolonização neoliberal cuidou de privatizar, não apenas empresas públicas e estatais, mas também os sonhos.

Os jovens já não sonham em escala nacional e planetária, exceto no que concerne à preservação da natureza. Sonham em escala individual e familiar: conforto, riqueza, beleza e poder. Quem roubou os grandes sonhos? Por que o vocábulo ‘utopia’ desapareceu da linguagem corrente e é suspeito aos olhos dos intelectuais europeus?

Quem primeiro falou em utopia (do grego utopos, lugar nenhum) foi Hesíodo, poeta do século VIII a.C., em seu famoso texto "Os trabalhos e os dias". Evoca os homens que viviam como deuses, "sem preocupações em seus corações, protegidos da dor e da miséria." Ninguém envelhecia e, dotadas de "vigor incansável", as pessoas desfrutavam das "delícias dos banquetes". "Não conheciam o constrangimento e viviam em paz e abundância como os senhores de sua terra."

Hesíodo não nutria veleidades nostálgicas. Seu texto aproxima-se mais da literatura profética que da idílica. A era de ouro havia desaparecido porque os homens "não foram capazes de evitar a violência imprudente entre si e não queriam reverenciar os deuses." Agora, diz Hesíodo ao comparar a realidade ao sonho, não há "nenhum amor entre amigos ou irmãos, como no passado. Os contraventores saquearão as cidades uns dos outros e o poder fará a lei e o pudor desaparecerá."

A palavra ‘utopia’ foi cunhada por Thomas Morus em 1516, como título de seu mais conhecido livro. Essa idéia de que em tempos primordiais havia uma sociedade perfeita e que nos cabe, agora, resgatá-la, é mais acentuada nos filhos da tradição judaico-cristã. O mito bíblico do Paraíso isento de toda dor e pecado ecoa forte em nosso inconsciente. Aquilo que foi, será. Nem Marx logrou libertar-se do paradigma bíblico. Seu comunismo primitivo, imune à alienação e exploração, é a imagem de um passado refletido no futuro: a construção da sociedade comunista, onde haverá a adequação entre existência e essência do ser humano.

Em que ponto da Terra sobrevive a utopia que, no século XX, mobilizou milhões de militantes dispostos a dar a vida para que todos tivessem vida? O fundamentalismo islâmico não se compara ao ardor dos jovens revolucionários. Estes queriam mudar o mundo, não impor uma crença religiosa; buscavam implantar a justiça, não a predominância de uma fé; almejavam uma nova sociedade, não a hegemonia de uma religião; vislumbravam o êxito na derrubada do poder opressor, não na morte coroada pelo martírio.

O socialismo foi a grande utopia de minha geração. Sonhávamos com uma sociedade na qual ninguém estaria ameaçado pela fome, a guerra, a exploração, a discriminação e a marginalização. A Rússia foi a primeira a implantar, em 1917, o novo sistema esboçado na crítica de Marx e Engels ao capitalismo. Em 1949 o gigante chinês deu o mesmo passo.

Embora o socialismo tenha representado grandes avanços quanto aos direitos sociais, não tardaram a se repetirem as "desilusões de Hesíodo": crimes de Stalin, Revolução Cultural chinesa, imperialismo político, a ditadura do proletariado reduzida à ditadura dos dirigentes do partido único etc.

Hannah Arendt, militante da esquerda alemã, ao renegar suas idéias revolucionárias cometeu o equívoco de encarar o marxismo e o fascismo como diferentes versões do totalitarismo. Disseminou, pois, o pensamento antiutópico, hoje representado no Brasil pelo PSDB e pelo PT. Assim, cerrou o horizonte da esperança e reforçou o neoliberalismo.

Para os adeptos do antiutopismo, que já não crêem em sociedade pós-capitalista, há sim identificação entre este sistema e democracia. O capitalismo seria perverso em seus abusos, não em sua essência. Acreditam, portanto, em ser possível "humanizá-lo", sem atinarem para as conexões entre Wall Street e a Etiópia, o bem-estar dos países escandinavos e a presença significativa de seu capital e de suas empresas em países emergentes.

Sofre-se, hoje, de distopia, a utopia deteriorada, ceticismo, desencanto, que induzem muitos a se acomodarem tristes em seu canto. O que resta da esperança quando já não cremos em líderes, partidos, doutrinas e ideologias? O que resta quando, à nossa volta, se fecham todas as portas e janelas? Resta a amargura, o desalento, a repulsa ao poder. Esse o momento em que o sistema comemora a sua vitória sobre nós. Esvaziar-nos de utopia, neutralizar-nos, cooptar-nos, eis a tática daqueles que professam o dogma de que "fora do mercado não há salvação".

Quem não sonha com a utopia corre o sério risco de recorrer ao sonho químico das drogas, que sempre termina em pesadelo.

Um comentário:

utópica disse...

é com grande prazer que comento esse texto do nossso UTÓPICO FREI BETO.Semana passada lembro-me ter dito a vc que a utopia está dentro de cada um de nós. Sei que foi com um pouco de pesar que vc leu tal afirmação.Mas FREI BETO de forma grandiosa nos diz exatamente isso,a utopia, de certa forma morreu na sua intensidade ou seria densidade? mas resiste bravamente em doces coraçoes como o Dele,O Seu e muitos outros que existem por aí, mundo a fora.É com a alma repleta de esperança e utopia,que registro aqui esse comentário,ao tempo em q te parabenizo por ler FREI BETO,por postar escritos tão BELOS,E POR MANTER-SE FIRME NOS SEUS PROPÓSITOS DE VIDA EM SOCIEDADE MAIS JUSTA. TE AMO ORGULHOSAMENTE!!!!!!AH!Eu tenho o livro UTOPIA de THOMAS MORUS, vou mandar p vc. bjs!!!!!!!